Entrevista a Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura

Nuno Grande e Anne Wermeille

Comecemos pela vossa formação. Vocês forjaram-se na chamada “Escola do Porto” e tornaram-se depois na sua face mais visível. No vosso entender, essa Escola existe enquanto tendência arquitectónica?

Álvaro Siza
Existe uma escola, um edifício com um corpo docente que evoluiu ao longo do tempo. Comecei, em 1949, como aluno da Escola de Belas-Artes. Ali fui marcado pela entrada de Carlos Ramos, primeiro como professor, depois como director. Ele soube escolher uma equipa fantástica de professores – Fernando Távora, entre outros –, criando uma atmosfera de renovação. Era uma escola pequena, com poucos estudantes, marcada por relações muito próximas, dentro e fora das aulas, sobretudo com os ateliers da cidade onde os alunos começavam a trabalhar a partir do 4º ano. Era, nesse sentido, uma escola de “tendência” com gente que trabalhava colectivamente, tendo o projecto como disciplina central.

Souto de Moura
Nos meus primeiros anos como aluno, no início da década de 1970, encontrei uma Escola marcada por um forte pendor teórico, dominada por disciplinas como a História, a Antropologia ou a Linguística, mas onde se exercitava pouca Arquitectura. Aprendi, sobretudo, trabalhando no atelier do Álvaro Siza. Com ele era mais emocionante. Nos últimos anos do curso, que coincidem com o período da Revolução dos Cravos, assisti ao restabelecimento do desenho como instrumento disciplinar. A partir da experiência do SAAL [Serviço de Apoio Ambulatório Local], debruçamo-nos, alunos e professores, sobre o tema da Habitação Social, e aprendi, especialmente com Siza, a reconhecer a importância do desenho no projecto. A partir de então, passamos a ser conhecidos pela “escola do desenho e do rigor”.

A Escola do Porto foi sempre pluralista. O Távora nunca foi um grande entusiasta do Alvar Aalto, foi sempre mais adepto de Wright e de Corbusier; o Siza foi sempre adepto de Alvar Aalto, mesmo trabalhando com Távora; eu, trabalhando com Siza, era mais adepto de Mies van der Rohe e depreciava as curvas de Aalto. Acho portanto difícil encontrar um corpus de referências único na Escola do Porto, ainda que haja coesão nos métodos de ensinar e de projectar. Trabalhamos com os mesmos engenheiros, os ex-alunos tornam-se nossos colaboradores, e depois nossos amigos, convivemos e debatemos os projectos à mesa de um bom jantar… Existe, na verdade, uma geografia de relações.

Depreendo das vossas palavras que devemos entender a Escola do Porto como método e não como estilo. No entanto, muitas vezes, a opinião pública, ou mesmo a crítica de arquitectura, tende a olha-la, precisamente, como um estilo, usando como referente o conjunto da vossa obra. Consideram-se referências para os alunos da Escola?

AS
Os alunos transportam sempre referências para as aulas; nós próprios, já crescidos, também temos referências, não vejo mal nisso. No entanto, penso que não se deve insistir em endeusar arquitectos locais, criar um estilo ou um desenho característico para uma Escola do Porto, isso seria um desastre. A Escola deve antes alimentar um debate permanente que envolva os professores e os estudantes.

Eduardo Souto de Moura continua a dar ali aulas. Como vê a escola de hoje?

ESM
A mim solicitam-me para fazer a avaliação crítica de trabalhos, e estou também a leccionar um conjunto de aulas temáticas sobre os meus arquitectos de referência: Álvaro Siza, Aldo Rossi, Mies van der Rohe, entre outros. São aulas onde mostro a sua influência na minha obra… até já me acusam de ser demasiado pessoalista. Curiosamente, acho que a Escola do Porto carece hoje, não de uma axiologia, mas, de novo, de uma aproximação teórica ao projecto. Um método de projectar tem de ter por trás um corpo teórico. No Porto, sinto uma certa superficialidade no uso do desenho, e eu não quero que esta se torne numa “escola de figurino”.

As actuais políticas urbanas no Porto centram-se na questão da reabilitação do centro consolidado da cidade, a Baixa tradicional. Acham importante que os arquitectos da Escola do Porto se envolvam mais nesse processo, como já ocorreu noutros momentos?

Hoje, na reabilitação urbana, como noutros processos, quando se quer fazer um projecto, não se chama primeiro o arquitecto, como ocorria antigamente. Chamam-se primeiro os economistas, fala-se com os bancos, faz-se um estudo económico, e só depois se contacta o arquitecto, que assim passa a ser uma peça secundária nessa reabilitação, hoje encarada como um negócio qualquer. Reabilita-se optando pela solução mais barata, normalmente mantendo a fachada e demolindo o resto. É uma reabilitação inculta, porque encara a fachada tradicional do Porto como uma “máscara” para encobrir open-spaces. É um processo baseado apenas na rentabilidade económica ...

AS
As fachadas da Baixa do Porto estão a ficar todas desdentadas...

Vocês intervieram em espaços públicos centrais da cidade, quer no topo da Avenida da Boavista, na Praça em frente à Casa de Música, quer no coração da Baixa, na Avenida dos Aliados. Em ambos os casos, os projectos procuram resgatar a memória original desses espaços, apostando num desenho que, em última análise, se pode considerar conservador. O que pensam disso?

Eu acho que esse desenho não é conservador, bem pelo contrário. Conservador é projectar espaços colectivos e jardins cheios de coisas, quiosques, canteiros, esculturas, etc… No projecto para a Praça na Boavista revolvemos tudo, alteramos cotas, mas ninguém consegue perceber ali as “marcas” dos arquitectos. Na Avenida dos Aliados, a reacção ao nosso projecto foi gerada pela retirada do excesso de vegetação que lhe foram acrescentando ao longo do tempo. O curioso é que quando vamos a Paris ou a Itália ficamos maravilhados com as praças, verdadeiras salas de visita das cidades, e que não têm uma árvore... A Piazza Navona ou a Place Vendôme são superfícies pétreas, lisas e cheias de gente.

Álvaro Siza fala muitas vezes de um “horror ao vazio”, quando as pessoas se deparam com essas praças abertas e despojadas…

Há dois horrores contemporâneos: o horror ao vazio e o horror ao silêncio. Vivemos numa época em que se mete ruído, também visual, em todos os espaços vazios. Diz-se que a cidade está a desertificar-se e ataca-se o problema com o que chamam de “animação urbana” – música, arte pública, festa – mas tudo parece inconsequente. Porque não se respeita, de igual modo, o vazio e o silêncio de uma cidade?

A sul da Avenida dos Aliados temos outro eixo cuja reabilitação vem sendo adiada: a Avenida que liga a Estação Central de São Bento à Ponte D Luiz I… No seu segundo projecto para esse eixo, tomou como referência a pequena torre que Fernando Távora fez ressurgir junto à Sé Catedral – a Casa dos 24. Que relação estabeleceu com ela?

AS
Nessa Avenida deparei-me com uma sucessão de vazios abertos, resultado de decisões políticas tomadas ao longo do tempo – uma bela pedreira e um enorme buraco urbano à espera de ser preenchido. O Távora fez ali essa torre, uma obra extremamente difícil, mas fantástica, e que lançou o mote: reconstituir, de modo contemporâneo, o tecido interrompido em torno da velha Sé Catedral... Eu olhei para o seu trabalho e disse: está aqui a pedra fundadora da minha intervenção! Infelizmente e como sempre, o meu projecto foi muito criticado, e ainda não viu a luz do dia.

A nova Rede de Metro traçada pelo Eduardo Souto de Moura passa sob essa avenida, e ali o Álvaro Siza projectou uma das estações subterrâneas mais emblemáticas de todo o sistema: São Bento. Como decorreu esse projecto?

AS
O facto da estação de metro estar quase à cota da superfície da Avenida, colocou imensos condicionamentos à estrutura, pois tratava-se de um vão bastante grande. Procurei estabelecer uma relação com os detalhes das outras estações projectadas pelo Souto de Moura, o que, devo dizer, me facilitou bastante o trabalho. No final, o que mais gosto neste projecto é o facto de se tratar de um estação de atravessamento urbano, bem legível no seu espaço.

No Metro do Porto retomam-se materiais tradicionais, presentes na cidade – o uso do granito e dos azulejos decorativos. Como é que estes se integram num projecto com uma forte marca de contemporaneidade?

ESM
Precisava de projectar todo o sistema com bons materiais, ao longo de vários quilómetros de trilhos e estações. Sinto orgulho por tê-lo feito com poucos pormenores que se repetem sucessivamente, baixando consideravelmente os custos. Nesse processo pareceu-me natural utilizar o granito e o azulejo, materiais que, por tradição, aparecem sempre nas estações ferroviárias portuguesas.

AS
Eu tinha feito uma estação de metro em Lisboa utilizando azulejos facetados. É um material muito bom para o efeito, resiste ao choque e permite uma boa manutenção. No Porto, utilizamos o azulejo liso, o que permitiu introduzir motivos figurativos, como aqueles esquissos que fiz, a pedido do cliente, para preencher as paredes da minha estação.

Curiosamente, a obra subterrânea do Metro do Porto decorreu paralelamente à obra mais icónica do Porto contemporâneo: a Casa da Música, de Rem Koolhaas. Nela também se evocam materiais tradicionais do Porto, nomeadamente no Grande Auditório, forrado a madeira e folha de ouro, ou na pequena Sala VIP, revestida por réplicas de diferentes panos de azulejos da cidade. Como encaram essa evocação da tradição neste projecto?

ESM
Por acaso, a sala dos azulejos é a parte da Casa da Música de que menos gosto. Acho que não tem escala. Por tradição, os azulejos figurativos do Porto preenchem grandes panos em átrios ou salões. Na Casa da Música misturam-se vários panos alegóricos num pequeno espaço. Parece anacrónico, como se alguém quisesse ser pitoresco à força, fora do tempo…

AS
Koolhaas é um arquitecto estrangeiro, que vem trabalhar numa cidade de fortes tradições, resgatando esses elementos decorativos de modo quase literário. No entanto, o resultado é muito bom, e creio que ele viveu intensamente esta obra, com repercussões na sua carreira. No Porto, ele não resistiu a ser contextualista, quis abrir a Casa da Música à praça, de um dos lados, e à luz poente, no outro lado, duas ideias que manteve até ao fim. Koolhaas, que não costuma dar importância ao contexto, foi aqui influenciado por ele, tendo-se empenhado em percebê-lo, do ponto de vista físico e cultural. A partir desta experiência, fico à espera que ele escreva um novo livro em que nos fale da importância dos contextos…

Portugal tem dois arquitectos agraciados com o Prémio Prizker, o que é algo inusitado. Como é que este prémio mudou os vossos percursos?

AS
A única mudança de que tenho consciência foi o aumento de convites directos para realizar obras e conferências, ou seja, mais visibilidade no meio profissional e académico. Na minha atitude não mudou nada. De resto, o prémio Pritzker depende muito da conjuntura do momento e do modo como o júri se posiciona em relação a essa conjuntura.

Está a dizer que há uma tendência política na atribuição deste prémio?

AS
É bem possível que haja. Uma tendência geo-política e económica. Por exemplo, este ano dizia-se que o premiado seria asiático, e na verdade foi atribuído a um arquitecto chinês, algo que, creio, terá frustrado um ou dois japoneses que esperavam o prémio. Mas, é claro, a China é um país emergente, economicamente potente, e isso deve ter tido alguma influência.

No seu caso, Eduardo Souto de Moura, acha que essa tendência geo-política influenciou a decisão? O que é que mudou na sua carreira depois do prémio?

ESM
Desconheço quaisquer motivos políticos. Fiquei naturalmente agradado, mas por estar num período de inquietação no meu percurso, mantenho-me preocupado com a responsabilidade que o prémio me atribui. Não tenho tido mais encomendas directas, mas tenho sido convidado para grandes concursos internacionais.

É raro dois premiados Pritzker trabalharem tantas vezes juntos, algo que, na verdade, já vinha de trás. Como se conhecem tão bem, adivinham sempre a reacção do outro?

ESM
No meu caso, como não tenho nada a perder, desenvolvo um primeiro desenho e não faço a mínima ideia de como o Siza irá reagir... mas tenho a certeza que o projecto não vai ser aquilo que pensei de início, porque com ele nada é previsível. No Pavilhão Serpentine, por exemplo, disseram-nos a ambos: “esta obra não parece tua”.

AS
Ao que eu respondi: “se eu quisesse fazer uma obra que parecesse minha, não precisava de trabalhar com o Souto de Moura”.

Desenham sobre as propostas do outro? Não sentem pudor?

AS
Se o desenho é bom, eu não me atrevo.

ESM
Na primeira apresentação do projecto do Pavilhão Serpentine, em Londres, o Siza tinha ido para o Japão, e eu ia mostrar um desenho antigo e uma maqueta rudimentar. De repente, chega um Fax do Siza, com o a estrutura trapezoidal que tínhamos definido ao qual ele acrescentava uns volumes, uma patas, escrevendo: “o animal tem de andar”. Quando me perguntaram qual era o conceito do projecto, li-lhes a frase do Fax mandado cinco minutos antes… Quiseram vir ao Porto conhecer uma nova maqueta do “animal”, e quando chegaram o Siza mostrou-lhes uma cesta trazida por um colaborador, colocando-a na cabeça como se fosse uma carapaça…

Esse lado zoomórfico ou antropomórfico, que se reconhece nalguns edifícios de Siza, parece interessar-lhe cada vez mais. Sente que está a fazer uma reaproximação ao imaginário do seu mestre, depois de tantos anos a trilhar um percurso pessoal?

ESM
Quando se faz, durante anos, uma arquitectura abstracta ou neo-plástica, a nossa gramática torna-se muito reduzida. Não posso esconder que venho fazendo uma certa interrogação sobre a minha linguagem, e que venho procurando uma gramática mais ampla que encontro noutros arquitectos de que gosto. Siza esteve sempre muito próximo de mim, e essa sua dimensão mórfica fascina-me.

Porque sentiu necessidade de alargar essa gramática arquitectónica?

ESM
Criei um protótipo de casa muito simples, com muros cegos em contraste com grandes superfícies de vidro, que funcionavam como não-paredes. Para detalhar esse protótipo tive que investigar muito sobre a forma de depurar a presença dos elementos construtivos. Mas, de repente, dei-me conta que muitos arquitectos reproduziam essa minha investigação, de forma banal e mimética, e deu-me um desgosto ver Portugal inundado de casas “micro-ondas”, tal como as defino, gerando um processo a que tu, como crítico, já chamaste de “souto-mourização” da arquitectura portuguesa. Tenho, por isso, procurado fugir dessa banalização.

A propósito desta edição, falemos da vossa experiência na Suiça. Como se sentem, trabalhando nesse contexto?

AS
Na Suíça, encontrei uma boa execução e um bom apoio de obra. Além do engenheiro suíço, os arquitectos locais foram também fantásticos, pelo que nunca senti dificuldade em detalhar as minhas obras na Suíça.

E como se deram com a aplicação da legislação suíça?

ESM
É uma legislação inteligente, nunca repudia nada; mas pode ser perturbante, pois permite que a decisão de um júri, num concurso, se possa sobrepor ou até alterar os princípios do programa. Eu, por exemplo, no concurso para o Museu do Lausanne fui vítima dessa perspectiva…

AS
Na Suíça faz-se uma discussão pública sobre a construção de uma dada obra, que pode, inclusive, pôr em causa o próprio concurso. Mobiliza-se um grupo de opinião, organiza-se um referendo, e zás!… acaba-se com um projecto escolhido por um júri idóneo... Essa “super-democracia” tem os seus “pés de barro”…

Construíram dois edifícios contíguos no complexo da Novartis, em Basel. Trocaram críticas sobre os vossos projectos?

ESM
Críticas não, perguntas sim. Estávamos obrigados a fazer edifícios em vidro porque se tratavam, essencialmente, de laboratórios. Eu costumo fazer edifícios desse tipo, mas o Siza optou por fazer uma segunda fachada em vidro, como se o verdadeiro edifício estivesse lá dentro, numa vitrina. Perguntava-lhe se pretendia fazer essa dupla fachada para protecção, ele dizia-me que sim, mas na verdade, acho que, na Novartis, Siza constrói uma ironia sobre essa obsessão de forrar os edifícios a vidro.

AS
Na verdade, funciona como uma dupla fachada, com bom comportamento térmico. Mas também é verdade que ali vejo muitas fachadas sem um único caixilho, só borracha, vidros colados, tudo muito liso, o que realmente me aborrece.

Estão também hoje a trabalhar em mercados emergentes, no Médio e no Extremo Oriente. Como encaram essas oportunidades, por comparação com a Europa e com o modo como esta está a gerir a actual crise?

AS
Eu vejo os dirigentes europeus como um bando de loucos que estão a afundar, em geral, a indústria e a economia na Europa.

ESM
Na Europa estamos sempre no fio da navalha, há um grande desgaste, demoram-se anos e anos a discutir um projecto, a garantir o seu financiamento bancário, a iniciar a obra. O meu projecto no Médio Oriente não se concretizou por efeitos da Primavera Árabe, mas sinto que ali há uma grande vontade de investir.

E na Ásia?

AS
Gosto imenso de trabalhar na Coreia do Sul e em Taiwan, porque ali executam os projectos com respeito e primor. Na China comecei agora a fazer um projecto de um Museu para uma Universidade, que possui uma colecção fabulosa de documentos e objectos da Bauhaus. No Oriente, em geral, o ambiente é fantástico, sente-se um entusiasmo em conceber, em construir, e depois quando chegamos aqui, ficamos imediatamente deprimidos.

Então, e o que resta aos arquitectos portugueses?

AS
Emigrar. Ir para a China, para Oriente…. Bem, acho que será preciso cortar desta entrevista tudo aquilo que foi dito sobre a Europa, pois podemos gerar uma depressão nos arquitectos suíços, e eles não têm razões para isso…

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