O significado da paisagem

João Pedro Serôdio        

O Douro apesar da suave e ondulante expressão dos seus intensos vales, insinuante percurso do rio, e desenho curvilíneo dos seus célebres patamares, é um território quente de verão e gélido de inverno, e sobretudo árido e duro. Uma terra feita de pó de xisto e pedras, onde a água escassa obriga a vinha a criar raízes profundas que, nessa implacável luta pela sobrevivência, produz as condições necessárias à realização dos grandes vinhos.

O Douro é uma região demarcada para a produção do vinho há mais de 250 anos. A denominação de Vinho do Porto é da época em que se iniciam as grandes exportações para Inglaterra, por barco e a partir da cidade do Porto, em meados do séc. XVII. A região já produzia vinho antes, com registo desde as ocupações romanas. O percurso do vinho está ligado ao do rio, pois era na turbulenta corrente deste que os barcos-rabelo transportavam as barricas de vinho, para Gaia, onde nas suas sombrias encostas norte o vinho estagiava em frescos armazéns, até à data em que seriam embarcados, daí o nome de vinho do Porto.

No entanto, o acto humano que mais determinou a paisagem do Douro foi esse ancestral de criar os patamares para plantar a vinha. Estas encostas armadas com muros que percorrem níveis de cota continuamente. Os muros iniciais limitavam patamares horizontais de pequena largura, com baixa densidade de plantio, com xisto empilhado, pouco estruturado. Nestes estreitos patamares, a vinha era plantada sem ser alinhada ou estruturada, às vezes até nas paredes, e o trabalho era realizado manualmente ou a cavalo.

Em meados do século XIX, a filoxera, um pequeno insecto que ataca as raízes da videira, infestou áreas vinícolas em todo o mundo, com resultados devastadores para a produção mundial do vinho. Este acontecimento catastrófico marca um novo modo de construção dos muros, com implicações de significado na estrutura da paisagem. No período após a infestação pela filoxera criaram-se patamares maiores, que são superfícies de pendente suave, mas que exigem muros melhor construídos, capazes de conter maiores densidades de vinha, onde alguns dos trabalhos podiam ser realizados maquinalmente(1).

Nos anos setenta e oitenta, maquinaria agrícola mais evoluída veio permitir tratar planos de grande inclinação, e então surgiram áreas de patamares não murados, limitados por taludes, de maior rentabilidade mas distantes dos muros tradicionais e destrutivos para a paisagem duriense tradicional.

O xisto era retirado em pedreira aberta nos locais da construção, e da própria preparação e limpeza do terreno para o plantio da vinha. Este xisto não permite uma construção com a qualidade e comportamento mecânico de outras pedras mais consistentes e duras. Em consequência deste modo informal de extracção e da natureza mais frágil desta pedra, a estabilidade dos muros exige grande espessura, e nas paredes das construções, a impermeabilidade depende do recobrimento com argamassas. As construções mais nobres recorriam mais ao granito, a um custo evidentemente superior. Do xisto, pobre e tecnicamente pouco eficiente, resultava uma estética própria, em que as construções se distinguiam dos muros por serem recobertas e caiadas. As paredes das construções atenuavam os extremos térmicos com a sua enorme espessura com um mínimo de aberturas.

Gaia

Os vinhos do Porto e de mesa produzidos no Douro cumpriam estágio na quinta de origem no primeiro ano. Durante este primeiro período ocorrem várias transformações no vinho, como a fermentação “maloláctica” na primavera, e ainda outras operações de estabilização. Os vinhos eram eficientemente transportados pelo rio para as encostas frescas de Gaia, próximas do porto de embarque. Estas grandes áreas de armazéns em Gaia são também um caso extraordinário de arquitectura, com uma área substancial na cidade, ocupando totalmente o solo, constituindo também uma paisagem do vinho. A paisagem urbana que definem tem paralelo com a imagem dos muros durienses. Esta paisagem de densos armazéns é resultado de inteligente, determinada e planeada vontade humana, apesar de conviver com alguma casuística que lhe introduz irregularidade e é inquestionavelmente arquitectura.

Significado

O trabalho de transformação desta paisagem foi realizado nessas duras condições que se elogiam para a vinha, temperaturas extremadas, solos xistosos, pedregosos íngremes e áridos. E esse trabalho era repetido continuamente, todos os anos remontando, reconstruindo e reparando extensões incalculáveis de muros, para manter viva esta estrutura produtiva, esta paisagem.

Há no vinho um sentido metafísico, uma transcendência que lhe deu a história, que não é comparável à de outros produtos. No contexto desta monoprodução transformadora da paisagem, na exagerada escala de uma região como a do Douro, essa importância histórica e filosófica é também sustentada pela pragmática, sentida na vida de todos os seus habitantes, onde qualquer sobressalto climático põe em causa a sua sobrevivência num futuro imediato, e até o excesso de produção pode afectar a sua vida, às vezes de modo tão destrutivo como o contrário.

A paisagem duriense, com uma superfície plena de efeitos da intervenção humana, muros, construções, e cicatrizes, é também o resultado de uma intensão inteligente, gerida no tempo, e é por essa razão, projecto. Ainda que realizada apenas na superfície da grande topografia desse território, ainda que determinada pelo natural, esta paisagem resulta de uma acção inteligente do homem com a natureza. Porque há um sentido para esta paisagem construída, um motivo e uma razão, porque há uma vontade de domar o território, de o tornar produtivo sem o desequilibrar, de usar e manter a paisagem viva, esta paisagem humanizada é perfeita arquitectura.

Este esforço de humanização da paisagem significa um esforço enorme para domesticar a íngreme topografia e o duro clima, criando condições excepcionais para a produção de grandes vinhos. Parece ser um caso bem-sucedido de absoluta simbiose de esforços, entre natureza e homem que transformam e dão forma a uma enorme área, mostrando que é possível intervir em grande escala na paisagem sem ser destrutivo. Esta paisagem ilustra a possibilidade dessa coexistência preciosa.

Agora

Agora há estradas, vias rápidas e auto-estradas. O porto de carga já não é no rio Douro, e a maioria dos transportes é realizada por estrada. Em suma, o estágio dos vinhos em Gaia também já não faz sentido e passou a realizar-se nas quintas onde é produzido. Deste facto resultou o abandono dos armazéns de Gaia. Por outro lado, os vinhos são vendidos hoje mais novos, reduzindo as necessidades de armazenamento, com vantagens económicas evidentes para os produtores. Por outro lado, o sistema produtivo do vinho sofreu evoluções que levaram ao abandono dos lagares, onde as uvas eram esmagadas a pé, por sistemas automatizados. As construções para a produção e armazenamento do vinho têm hoje exigências muito diferentes; por outro lado, o actual sistema de promoção dos vinhos, num meio de marketing extremamente competitivo e exigente, veio remeter para a arquitectura destes espaços produtivos um novo papel muito significativo. Esta situação impulsionou a construção de novos edifícios para a produção vinícola.

A paisagem Duriense é um contexto influente para uma arquitectura inteligente e preocupada. Esta paisagem e a sua razão não estão mortas, este equilíbrio está vivo, esta paisagem, humana e natural, funciona, esta simbiose é produtiva, e este sentido que a paisagem tem, permanece. É uma paisagem cheia de sentido, cheia de “estrutura formal” e plena de história. É um contexto possessivo que torna difícil realizar um objecto arquitectónico isolado e único, que pretenda para si todo o protagonismo.

A adega da Niepoort em Armamar de Andreas Burhard, a adega da Touriga de António Barbosa, a adega da Quinta do Vallado da Cristina Guedes e do Francisco Vieira de Campos, a adega da Quinta do Portal, projecto de Siza Vieira e o projecto para a central hidroeléctrica e áreas sociais da barragem de Foz Tua, de Eduardo Souto de Moura, são exemplos de estratégias arquitectónicas muito diferentes, que apontam caminhos sensíveis a este território e à sua história, que procuram um caminho entre este possessivo território, dando-lhe prioridade, e a vontade de representação comercial dos produtores.

A adega da Niepoort em Armamar de Andreas Burhard, é bastante clara na sua intenção de dissimular um considerável volume de construção na topografia estruturada dos patamares murados tradicionais. O volume procura integrar-se sem desaparecer, referir a lógica da construção tradicional, sem verdadeiramente a mimetizar. Mas a construção não segue exactamente a estrutura em patamar do terreno e revela o edifício, e nessa ambiguidade reside a sua estratégia formal.

A pequena adega da Touriga, de António Barbosa, formalmente contida, assume o xisto como revestimento, destacando-o da estrutura metálica que suporta a cobertura, e construindo espaços perfeitamente proporcionados, de motivação funcional, industriais, excluindo qualquer acto formal gratuito. O edifício é pertença deste território e desta função, usa sítio e função para construir a imagem. No entanto a adega da Touriga não se confunde com o território onde se instala e o tema funcional, que é dominante formal do projecto, em nada se compromete com necessidades de injustificado protagonismo.

A adega da Quinta do Vallado da Cristina Guedes e do Francisco Vieira de Campos é um projecto exploratório, e propõe novos modos de reagir a esta paisagem. Usar a estrutura em patamares, não para se integrar e se misturar, mas para ser um acontecimento com ela, sem desaparecer na paisagem, para fazer sentido nessa estrutura. O projecto procura encontrar uma relação biunívoca, em que duas partes distintas, paisagem e adega, só fazem sentido uma em presença da outra. A forma também não é apenas determinada pelas necessidades funcionais do estágio dos vinhos, mas no entanto o espaço produzido produz uma memória platónica possível de um espaço destes. Este resultado é obtido pela percepção mental que induz, em que as referências não são só físicas, recorrendo à nossa memória, à nossa experiência. A construção é formalmente invulgar e com uma forte identidade, é um protagonista na paisagem.

A adega da Quinta do Portal, projecto de Siza Vieira, está colocada num planalto livre das referências mais comuns da região, mas na presença ordenada das vinhas. O edifício é claro na sua autonomia formal, não está integrado em muros, não se justifica numa realidade pré-existente, por referência ou antagonismo. O volume possui um nível de contacto com o solo, regular, suportando na sua cobertura acontecimentos de menor escala. À distância, esta base confunde-se com o xisto da região e a cor do terreno. A proporção longitudinal do volume, acentuado pelos seus dois níveis formalmente diferentes, adequam-no e integram-no. Mas, aquilo que aparenta apazigua numa primeira e distante leitura do edifício, e parece não pôr nada em causa. Alguma inquietude fica, uma suspeita de que há outra leitura. A um nível mais fácil e reconfortante, segue-se uma segunda leitura mais profunda e de maior significado. A base do edifício, afinal, é revestida à também natural cortiça, e é macia, demonstrando que não é só o óbvio que é solução. Como se a uma primeira impressão de naturalidade se opusesse uma segunda de adequada artificialidade, numa complexa referência ao próprio sentido de construção da paisagem do Douro. Os intrigantes acontecimentos que rematam o edifício, explicam-se na experiência da paisagem de quem lá vai. Por outro lado, apesar desta liberdade formal, os espaços, do ponto de vista da produção do vinho, são de uma racionalidade cartesiana implacável, mas colocados e desenhados de um modo único, que revela e não deixa dúvida sobre uma capacidade extraordinária de pôr tudo em causa, reinventar tudo, sempre.

O projecto para a central hidroeléctrica e áreas sociais da barragem de Foz Tua, de Eduardo Souto de Moura, evidencia uma eficiente síntese formal, reduzindo o impacto paisagístico dos edifícios inicialmente previstos, fazendo desaparecer da paisagem a maior parte dos equipamentos. O projecto recorre aos meios que melhor servem à redução do impacto destas instalações. Tudo o que não é obrigatório ficar no exterior, é enterrado na encosta, tudo o que precisa de luz, é discretamente colocado sob a plataforma que suportará as áreas técnicas exteriores. A topografia é naturalmente transformada, como aliás sempre foi, para se adaptar à realização da plataforma que servirá para colocar os equipamentos que têm de ficar no exterior. Poder-se-á pensar que há modéstia no gesto, ou submissão ao território, mas não, há uma absoluta compreensão da paisagem e da sua importância, um exímio controlo do desenho que gere a necessidade de transformação do território em acordo com a estrutura da paisagem, tal como quando se transforma a região para plantar vinhas e produzir o vinho.

A paisagem parece significar algo exterior e distante, que não faz parte de nós(2), mas a verdadeira extensão de qualquer paisagem atravessa quer o exterior quer o interior do indivíduo, e resulta em algo que não podemos considerar parte distinta de nós , tal como uma qualquer célula viva não se pode considerar autónoma do corpo em que se abriga. Pretendemos que os objectos que criamos para serem habitados sejam absorvidos como parte integrante do complexo sistema que habitamos e que constitui a paisagem. Não nos é suficiente utilizá-la como referência, não nos é suficiente utilizá-la como matéria a representar, mas como situação física na qual participamos e de que fazemos parte, alterando-a, modificando-a, numa permanente mutação. Umas vezes subtilmente, onde a presença de novos objectos arquitectónicos é realizada mantendo a forma e razão da paisagem existente, outras vezes com determinação, provocando mudanças, para encaminhar essa constante mutação para uma direcção melhor(3).

Estes projectos, que usamos aqui para mostrar como se pode construir nesta região, entendem assim a sua participação na paisagem, como parte de um todo, e as inteligentes estratégias que defendem, apesar de diferentes, fazem sentido nesta leitura.

A paisagem também é quimera, também é sonho, vontade de um futuro, por isso também é representação imaginária, que usamos para projectar o modo de a habitar, de a usar. Foi esse sonho e essa quimera perseguida num tempo histórico que determinadamente construiu esta paisagem. Esse é o agente da construção e transformação desta paisagem, essa é a razão da estrutura da paisagem humanizada do Douro vinícola, e mesmo que qualquer opção esteja em aberto para a arquitectura que em pequena ou grande escala se realiza nesta estrutura, é reconfortante pensar que este sonho é respeitado e que perdura.

(1) Este tipo de informação geral pode ser consultada em diversas publicações das quais destaco: António Barreto (1993) “Douro”, Lisboa: Edições INAPA. A.L. Pinto da Costa (1997) “Alto Douro Terra de Vinho e Gente”, Lisboa: Edições Cosmo. A. Moreira da Costa; A. Galhano; E. Serpa Pimentel; J.R.-P. Rosas (1987) “O Vinho do Porto”, Porto: Edição do Instituto do Vinho do Porto

(2) tal como referido por Bill Viola em resposta a Martin Friedman, Bill Viola (1995), “Landscape as Metaphor” in “Reasons for Knocking at an Empty House ”. Cambridge: The MIT Press.

(3) Com o sentido senão com as palavras já antes utilizado em João Pedro Serôdio (2002)“A Paisagem como Referência” in “3:2:1 serôdio furtado architects”, Antwerp: DeSingel

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